sábado, 4 de outubro de 2008

OS ROSTOS DA CRISE - REVISTA VEJA

Na cadeia alimentar da crise

Quando se conversa com os personagens da crise,
percebe-se que havia uma farra em que todo mundo
– do americano sem renda nem emprego aos nababos
de Wall Street – sabia mas fingia não ver que alguma
coisa estava erradana cadeia alimentar da crise

André Petry, de Nova York


LORANCE, na foto à esquerda, começou a preparar sua aposentadoria e passou a comprar imóveis em Albuquerque, no Novo México. Gbadamassi (à dir.), nascido no Congo e morador dos EUA há onze anos, queria ser dono de todo o quarteirão onde mora. Cada um a seu modo tentava tirar vantagem da bolha imobiliária. Lorance não tem dinheiro para se aposentar. Gbadamassi já perdeu uma casa

"A minha idéia era ser dono do quarteirão inteiro."

O plano de Hamidou Gbadamassi é uma mostra das ambições desconcertantes que o mercado imobiliário americano liberou antes de explodir. Gbadamassi nasceu no Congo e, há onze anos, resolveu imigrar para os Estados Unidos. No seu primeiro trabalho, foi lavador de carros. Ganhava 3 dólares por hora. Depois, foi faxineiro de avião, até chegar a supervisor numa empresa aérea. Em 2002, Gbadamassi morava de aluguel, sua vida estava estabilizada e ele então resolveu apostar na casa própria. Em Newark, cidade próxima de Nova York, comprou um imóvel de 229.000 dólares com financiamento para pagar em trinta anos. Foi como um passe de mágica. Não teve de desembolsar um único centavo de entrada. Não teve de apresentar nem comprovante de renda. Em 2004, o mercado imobiliário seguia bombando, as casas eram bonitas e o dinheiro era fácil. Gbadamassi fez novo financiamento de trinta anos e comprou outra casa, de 485.000 dólares. No ano seguinte, fez um terceiro empréstimo e arrematou sua terceira casa, de 575.000 dólares. De casa em casa, o congolês estava erguendo seu pequeno império imobiliário. Nesse ritmo, em quinze anos, seria um barão do ramo imobiliário. Por que não?

Há um ano, o alicerce estremeceu. Os juros dos empréstimos começaram a subir e o mercado esfriou. Ninguém se interessou em comprar uma de suas casas. O único locatário que tinha decidiu se mudar. Gbadamassi, com as casas vazias e sem comprador à vista, ficou sem dinheiro para bancar os três empréstimos, cujas prestações somavam 14.000 dólares mensais. Ele é dono de uma loja de conveniência em Newark e faz bicos comprando e vendendo automóveis, mas nem de longe consegue arcar com seus compromissos. Deixou de pagar a terceira casa, que está em via de ser leiloada. "Estou 100% preocupado", diz, com semblante contraído. "O que vai acontecer em dois anos?" Quando se volta para Wall Street, o coração financeiro de Nova York e do mundo, as notícias que Gbadamassi recebe não são animadoras. "A crise está ficando cada dia pior", alarma-se. Dos 700 bilhões de dólares que o governo vai injetar em Wall Street, Gbadamassi não receberá um tostão. Ele sabe disso. E eis uma das razões pelas quais os americanos médios andam com ganas de Wall Street. Na crise, eles perdem a casa. Os nababos do mundo financeiro recebem ajuda oficial. Até quando perde Wall Street ganha.

Enquanto durou, foi farra para todo mundo. Megan Martyn é divorciada, tem 40 anos e três filhos. Recebe pensão de 750 dólares. De vez em quando, dá aula de dança do ventre e descola uns trocados ajudando na faxina de uma casa. Ela tem um perfil muito parecido com o que os americanos chamam de "ninja" (sigla para "no income, no job, no assets", ou "sem renda, sem emprego e sem bens"). Em 2002, Megan estava endividada, mas tinha uma casa centenária, de 1905, onde mora há mais de uma década. Seguiu o conselho de uma amiga e hipotecou o imóvel. Pediu 65 000 dólares. "Eles fizeram um arranjo criativo por lá", conta ela. "Na verdade, eles nem deviam ter me dado empréstimo. Eu não tenho renda, só pensão." Mas deram, e ela não se preocupou em ler o contrato direito. Queria que a prestação não passasse de 500 dólares e pensou que os juros fossem fixos. Tudo errado. Depois de dois anos, a taxa de juros começou a oscilar, já chegou perto dos 10% ao ano, e a prestação arranha a casa dos 800 dólares. Megan não paga a hipoteca desde janeiro, deve quase 10.000 dólares e teme ser despejada. Na frente da casa, uma modesta placa informa: "Vende-se". Ela quer 225.000 dólares. Em dois meses, apareceu só um casal de São Francisco. Visitou a casa e nunca mais voltou.


CASSANO chefiou em Londres uma filial da AIG, a gigante dos seguros, onde fez chover dinheiro. Era tanto dinheiro que os empregados da unidade, menos de 400, receberam 3,5 bilhões de dólares em bônus em sete anos. O paraíso de Cassano, erguido à base de operações altamente heterodoxas, começou a ruir, incinerou 25 bilhões de dólares e quase levou a AIG às portas da falência

A bolha era assim: havia uma impressão generalizada de que alguma coisa estava errada. Megan Martyn sabia que não podia pegar o empréstimo, mas pegou. Todo mundo, do americano que vive de bico ao magnata de Wall Street, aproveitou o que pôde. Alan Fishman, que construiu boa fama no mercado financeiro, entrou no capítulo final da farra – e deu-se bem. Na noite de 25 de setembro passado, Fishman estava sentado numa poltrona no vôo de Nova York para Seattle. Três semanas antes, ganhara um novo emprego. Fora contratado para dirigir o Washington Mutual, um dos mamutes do setor bancário americano. Sua missão era salvar o banco. Assinou um contrato polpudo. Entre salário, bônus, ações e gratificações diversas, receberia quase 20 milhões de dólares mesmo que sua missão fracassasse. Não teve tempo nem de falhar. Fishman só soube que o banco fora à falência e sua carcaça fora vendida por 1,9 bilhão de dólares para o JP Morgan quando desembarcou no aeroporto de Seattle, onde fica a sede da instituição. Estava sem emprego, mas 20 milhões de dólares mais rico. Pegou a bagagem na esteira do aeroporto e foi embora.

Outros foram fundo na farra, arriscando impérios de verdade. Joseph J. Cassano, 53 anos, sorrateiramente empurrou à beira da falência a AIG, a maior seguradora do mundo, com mais de 100 000 empregados em 130 países. Cassano, como chefe de uma modesta unidade da empresa em Londres, fez chover dinheiro. Ganhou tanto, mas tanto, que em sete anos sua unidade, com menos de 400 empregados, distribuiu 3,5 bilhões de dólares em gratificações. Quando o mundo começou a desabar, incinerou 25 bilhões de dólares. A diferença é que, hoje, ele mora numa bela casa de três andares na capital inglesa, pertinho da famosa loja Harrods. Ginger Lorance, 64, também apostou na farra. Faltando pouco tempo para se aposentar, fez um plano para a velhice. Com sua experiência de catorze anos como corretora de imóveis em Albuquerque, no Novo México, ela sabia que havia facilidades no mercado. Comprou um apartamento. Depois, outro. E mais um. E construiu uma casa. E depois outra. Fez empréstimos com juros fixos, mas não contou com um mercado desaquecido. Hoje os aluguéis rendem pouco, as vendas pararam. Em vez de fazer o pé-de-meia para aposentar-se, Lorance está sacando da aposentadoria para viver. "Sempre trabalhei duro, sempre tive dinheiro e fui responsável. É bizarro que eu esteja vivendo isso." Ela não faz idéia de quando poderá se aposentar.

Nas bolhas, todo mundo quer tirar sua casquinha. Alguns conseguem. Em Jersey City, a quinze minutos de metrô do sul de Manhattan, um casal de brasileiros não tem o que reclamar da crise. "Não dá nem vontade de sair daqui", diz a estudante de museologia Roberta Crelier, encantada com a parede roxa no fundo da sala, seu canto preferido no imóvel que ela e o marido, Felipe Lara, acabaram de comprar. Trocaram um aluguel de 1 200 dólares por uma prestação de 1 530, por trinta anos, com juros fixos. Empréstimo naquela base: só 10% de entrada e nem foi preciso apresentar comprovante de renda. "É como se você fosse comprar um computador na loja", diz Lara, que faz doutorado em composição na Universidade de Nova York. Outra brasileira, Ana Lúcia Barreto de Carvalho, 39 anos, formada em hotelaria no Rio de Janeiro, também está feliz da vida. Chegou aos Estados Unidos em 2000 e logo ficou atraída pelo mercado imobiliário. No ano seguinte, já tinha uma casa. Comprou por 68 000 dólares e vendeu por 135 000. Depois comprou outra casa por 335 000 reais e vendeu por 455 000. Chegou a adquirir três casas entre abril e outubro de 2006. Hoje é dona de dois imóveis e acha que o mercado frio é a hora de faturar. "Estou procurando outra casa, outra galinha-morta", diz ela.


SCHWARTZ deixou o Bear Stearns falido, mas nos seus catorze anos no banco embolsou mais de 160 milhões de dólares, saiu com uma indenização polpuda e seu nome ainda é disputado no mercado. O americano médio não compreende compensações tão generosas para o fracasso. Por isso, o pacote de 700 bilhões só foi aprovado com limites nos bônus pagos aos executivos de empresas que pegarem a ajuda oficial

Galinha-morta é o que James Dimon tem colecionado no mercado. Ele é o principal executivo do JP Morgan, que acaba de levar o que sobrou do Washington Mutual por menos de 2 bilhões de dólares. Antes, Dimon fez um negócio ainda mais luminoso: abocanhou a primeira grande vítima da crise, o Bear Stearns, um dos cinco maiores bancos de investimento que foram à lona em março passado, atulhado de créditos pobres. Numa sexta-feira, a ação do Bear Stearns valia perto de 30 dólares. Dois dias depois, em pleno domingo, Dimon levou o banco por 2 dólares a ação. O executivo do Bear Stearns, Alan Schwartz, fez um péssimo trabalho? No mercado financeiro, há movimentos heterodoxos. Só no período de 1993 a 2007, Schwartz embolsou mais de 160 milhões de dólares em bonificações no banco, e deixou a casa falida. Eis outro dado de estranhamento entre os príncipes de Wall Street e os ninjas da América: os bônus milionários. Num país construído na base da meritocracia, é duro engolir compensações robustas para quem foi à lona. Por isso, o socorro de 700 bilhões para Wall Street só foi aprovado depois que se criaram limites nas compensações pagas aos executivos de empresas que recorram à ajuda oficial. "A restrição às compensações financeiras não é saudável, mas é uma medida política para aplacar a ira pública", disse a VEJA Charles Elson, expert em governança corporativa da Universidade de Delaware. Pois é. Em casa onde falta pão, todos brigam e ninguém tem razão.

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